Eu tinha 9 anos quando meu pai me trouxe um exemplar dessa Gramática Ilustrada que ele achou – já não tão atual naquele momento, mas que viria a ser de fato essencial na minha vida. Eu ainda não sabia, mas esta foi a primeira de uma pilha de gramáticas e manuais que eu teria futuramente.
Lembro do quão curiosos achei os termos do tipo “sintaxe”, “anacoluto”, “cacófato” e da vontade imediata de ler todo aquele manual como se fosse uma hq. Queria decorar, sabe deus por que, todas as regras apresentadas, achava sensacionais as explicações, os exemplos, mal sabendo que muita coisa ali poderia já estar até ultrapassada – sim, a língua é viva, minha gente!
Se isso se deu porque eu já teria uma predisposição a trabalhar com a língua portuguesa ou se me tornei letróloga por ter me apaixonado por aquela gramática – ou nem uma coisa, nem outra –, nunca saberemos.
O fato é que isso virou uma lembrança boa, e como profissional do texto consigo perceber hoje sensos comuns que caem por terra quando passamos a estudar essa coisa toda de regras.
Certo ou errado?
A “preocupação” que tive de decorar cada página da minha linda gramática era puro entretenimento. Inusitado? Talvez, mas era isso. No entanto, não é difícil notar que crescemos absorvendo a noção de que dominar regras gramaticais se correlaciona a uma suposta superioridade.
Quem nunca se deparou com um “professor de português” nos comentários de redes sociais corrigindo “erros” de desconhecidos com a imensa certeza de que está prestando
grande serviço à sociedade? Repare no tom preeminente de quem distribui correções não solicitadas.
A minha própria gramática ilustrada traz os seguintes dizeres na epígrafe:
É eita atrás de vixe! “Nossa, essa revisora de textos é contra escrever ‘certo’?”. Calma, lá! Eu amo a língua portuguesa, amo estudar as regras e nuances da linguagem, e prezo por um trabalho de revisão impecável quanto a eliminar erros na escrita. Mas não vou ficar revisando mensagens de WhatsApp ou interações nas redes sociais com tom de julgamento, simplesmente porque aquilo não é um texto científico que vai ser avaliado, e porque entendo que a norma-padrão não é a única existente.
Assim como a gente costuma usar um tipo de roupa para cada ocasião, eu não vou escrever um texto para uma cliente que está negociando um serviço da mesma maneira que escrevo para minha irmã, que certamente não vai ligar se eu dispensar uma concordância ou duas e abreviar umas palavras.
O que acontece é que culturalmente julgamos alguns modos de falar e escrever como mais “corretos” que outros. Existe a forma considerada de prestígio, e outras que são entendidas como inferiores. Mas ao falarmos de linguagem a realidade vai muito além do conceito de certo e errado, e as pessoas desconhecem isso pelo fato de, por diversas motivações sociopolíticas, terem vivido um modelo de ensino que enfoca muito mais a norma-padrão, dando menos atenção à variação linguística e ao preconceito linguístico – e isso já é tema para outro post.
Então quer dizer que é errado estudar gramática?
Não! Você pode aprender as regras da norma-padrão (aquelas listadas nos manuais de um jeito suuuperlegal) com a consciência de que esse não é o único modo de se comunicar e tá tudo bem! Inclusive, que massa se você dominar a norma-padrão para aplicar nos contextos em que isso for necessário e ao mesmo tempo usar tranquilamente seus outros modos de se comunicar com a segurança de que não está ofendendo ninguém.
Então agora preciso fazer igual você criança e tentar decorar a gramática inteira?
Não também! Ninguém precisa decorar nada, nem eu mesma – inclusive, revisor nenhum no mundo vai decorar todas as normas de um idioma, nem é esse o objetivo da profissão. O que você precisa para ser feliz é ter a segurança de estar se comunicando de maneira eficaz, seja em contexto formal ou informal.
Como vou escrever um bom texto formal se não conheço tantas palavras rebuscadas ou formas bonitas de me expressar?
Notícia boa para você: já foi o tempo em que linguagem formal é sinônimo de escrita difícil e pedante! Com as devidas ressalvas de textos técnicos que possuem suas particularidades, é lindo de se ver um texto acadêmico, por exemplo, que não despeja palavras dificílimas facilmente evitáveis e construções imensas cheias de volta só para parecer bem escrito. Portanto, ser simples e sucinto gera ótimo efeito na escrita.
Como eu faço pra falar português “certinho” se eu não estudo gramática?
Do jeitinho que você vem fazendo a vida toda! Ao contrário do que a epígrafe da minha gramática ali em cima dá a entender, a língua pátria é muito mais do que as regras da norma-padrão, que inclusive vão se alterando com o tempo de acordo com os usos dos falantes. Ela abrange todas as múltiplas formas de comunicação perfeitamente
dominadas mesmo pelas pessoas de baixa escolaridade que podem parecer, aos desavisados, “não saber falar corretamente”.
Para entender melhor o tema do preconceito linguístico, recomendo o cara que é referência no assunto e super-reconhecido na área: Marcos Bagno. Entre seus vários livros incríveis, uma boa introdução é feita em Preconceito Linguístico.
Hoje, pego carinhosamente essa gramática nas mãos com a consciência de que não saber uma conjugação ou outra não faz de ninguém um antipatriota, ao mesmo tempo que mantenho a ânsia por corrigir alegre e minuciosamente os textos que chegam para revisão aqui na Pormenores.
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Livros citados:
BAGNO, M. Preconceito Linguístico. 54. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
SACCONI, L. A. Gramática Essencial Ilustrada. São Paulo: Atual, 1994.